terça-feira, 5 de outubro de 2010

Crime Continuado: Lei que vigorou dois anos pode beneficiar Carlos Silvino (Bibi)

«Artigo do Código Penal foi alterado no dia da sentença da Casa Pia.


O artigo do Código Penal que permitia a um suspeito de várias sevícias sexuais sobre a mesma vítima responder apenas por um crime foi revogado na última alteração ao Código Penal, que está em vigor desde domingo. Ainda assim, o principal arguido do processo casa Pia, Carlos Silvino (Bibi), e todos os arguidos por crimes sexuais podem, ainda, invocar a lei que vigorou ao longo dos últimos dois anos, se esse for o regime mais favorável para eles.

Em causa está a segunda parte do número 3 do artigo 30 da lei penal, introduzida em Setembro de 2007, que regula o crime continuado. A figura do crime continuado, como explicou o juiz Rui Rangel ao DN, só era aplicada no "nosso ordenamento jurídico relativamente a crimes patrimoniais". "Uma pessoa que praticava vários crimes de furto com o mesmo modus operandi pode ser condenada apenas por um furto", exemplifica.

De fora ficavam todos os crimes "contra bens eminentemente pessoais", ou seja, todos aqueles que punham em causa a dignidade da pessoa humana e que atentassem contra a vida, a integridade física ou a autodeterminação sexual.

A questão foi levantada e discutida pela Unidade de Missão para a Reforma Penal, presidida pelo actual ministro da Administração Interna, Rui Pereira. O grupo de trabalho considerou que faltava à lei a norma já acolhida pela doutrina - e que retirava do crime continuado todos os crimes contra bens pessoais.

No entanto, recorda ao DN o secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Rui Cardoso, quando o projecto chegou ao Parlamento, já acrescentava uma ressalva a essa disposição: "Salvo tratando-se da mesma vítima".

A lei foi aprovada permitindo ao arguido ser beneficiado quando os crimes sexuais que cometesse fossem contra a mesma vítima. Vozes críticas ergueram-se de imediato. Uma petição feita pela Associação de Juízes pela Cidadania e entregue no Parlamento pediu uma revisão urgente do Código Penal. O próprio PSD suscitou a questão e conseguiu que a mudança na lei fosse votada e alterada.

Mas a polémica em torno de todo o processo arrastou-se ao longo dos últimos dois anos, deixando a lei vigorar e podendo, ainda, ser usada por todos os arguidos alvo de processo neste período de tempo. Este será um dos argumentos a constar no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa assinado por José Maria Martins, advogado de Carlos Silvino. Já nas alegações finais o advogado pedira que fosse aplicado ao seu cliente o regime do crime continuado - na tentativa de reduzir os 160 crimes dados como provados.

Logo após a leitura da sentença que condenou Bibi a 18 anos de cadeia, José Maria Martins mostrou-se crítico por a condenação ter sido feita por cada facto e não por um crime continuado.

Para Rui Cardoso, apesar de serem já constantes as alterações ao Código Penal, "sempre que há erros na lei, eles devem ser alterados o mais rapidamente possível". O juiz Rui Rangel é ainda mais crítico: "Estas mudanças deram-se por questões insondáveis do poder político para resolver os problemas de alguém."

Já o professor Paulo Pinto Albuquerque, que também participou nas reuniões para a reforma penal, considera que a alteração ao artigo 30.º do Código Penal, em 2007, "foi um benefício para os agressores que cometem crimes contra bens pessoais de uma mesma vítima", referiu ao DN.

E apesar de a situação ter sido reposta, acredita que a lei está longe de ser perfeita e defende que todo o artigo 30.º, relativo ao crime continuado, "devia ser revogado". Segundo o professor, "o crime continuado favorece a formação de carreiras criminosas e incentiva a reiteração criminosa", uma vez que ao suspeito é permitido responder apenas por um crime quando, na prática, cometeu vários. Sendo a pena aplicada muito inferior à prevista em cúmulo jurídico de todos os crimes.»


Texto in DN online, 05-10-2010

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