terça-feira, 3 de agosto de 2010

Mário Soares - Crise na justiça




«1. A falta de credibilidade da justiça portuguesa está a tornar-se muito preocupante. As pessoas conscientes começam a sentir isso de forma irreversível. Ora a justiça, no sentido mais amplo do termo, isto é, todo o processo judicial - juízes, Ministério Públi- co, Polícia Judiciária, advogados, solicitadores, funcionários judiciais -, é o pilar fundamental do nosso Estado de direito, tal como o define a Constituição, e uma das bases principais da nossa democracia. Se perde credibilidade, como tem vindo, repetidamente, a acontecer, é a própria democracia que entra em risco. O que é extremamente grave porque deixa de estar segura a nossa liberdade, como cidadãos livres de um país livre, desde a Revolução dos Cravos.

A crise da justiça - é disso que se trata - é de muito mau augúrio, para o nosso futuro colectivo, pior do que a crise financeira e económica global. Por mais que julguem, em contrário, os economicistas de serviço. O exemplo do que se tem vindo a passar, em Itália, há alguns anos, aí está para o comprovar.

O descrédito da justiça portuguesa não depende, na minha modesta opinião, de as leis serem, eventualmente, más ou confusas. Depende, sobretudo, do arrastamento inusitado dos processos, que é inaceitável, sem que ninguém seja responsabilizado. Resulta também das fugas de informação, divulgadas pelos meios de comunicação social (que têm, di-ga-se, grandes responsabilidades no cartório e bastante impunidade), e do desrespeito total pelo segredo de justiça; dos julgamentos na praça pública, que se repetem, sem que nada aconteça aos responsáveis, e arruínam ou deixam manchas inapagáveis na reputação de pessoas inocentes e honradas; na apetência incontrolável dos juízes e dos representantes do Ministério Público, em aparecer nas televisões a falar, falar sem controlo nem senso, não percebendo que isso só os diminui e desprestigia, perante os cidadãos comuns; e, finalmente, as intervenções políticas, de representantes dos sindicatos judiciais e, sobretudo, do Ministério Público, não para defender os interesses dos seus associados - o que é compreensível, visto ser a sua função -, mas tão-só para visar adversários políticos, o Governo e, às vezes, certos partidos...

Não estou a atacar ninguém, em especial, nem os magistrados judiciais ou do Ministério Público, nem a Polícia Judiciária, em particular. Tenho muito respeito por esses profissionais em geral que, na maioria, considero bons. Sei que é importante separar o trigo do joio. Mas se analisarmos alguns processos mais mediáticos (e não só do processo penal), por um prisma jurídico-político rigoroso, não podemos deixar de concluir que há comportamentos de certos magistrados judiciais e sobretudo, do Ministério Público e policiais, que precisam de ser travados e investigados, para bem e prestígio da justiça, no seu conjunto.

Cito alguns exemplos: o caso Casa Pia, que se arrasta há quase dez anos, com vários julgamentos, feitos na praça pública, visando personalidades políticas e outras - inocentes - sem sombra de uma prova. Só para as desprestigiar política e civicamente. Outro exemplo, no plano desportivo: o caso "Apito Dourado", que se arrastou como uma telenovela, sem produzir qualquer resultado. Ou outros ainda, no plano empresarial: a chamada "Operação Furacão", lançada com a maior publicidade, levando à apreensão de inúmeros documentos em vários bancos importantes e sem que nada de concreto, até agora se viesse a apurar.

Para quê tudo isto? Onde estão as provas contra os visados, acusados nos jornais antes de serem sequer arguidos? Não se obtém qualquer resposta. Quase se diria que o objectivo é desacreditar a justiça e pôr em causa a democracia. É indispensável que estas más práticas sejam denunciadas, acabem e os responsáveis por elas sejam punidos.

2. O processo Freeport durou - se é que acabou? - quase seis anos. Durante esse longo período foram insinuadas acusações contra o primeiro-ministro, José Sócrates. Sem que fossem apresentadas quaisquer provas. Pretendeu-se envolver até a justiça inglesa que, desde o início, afastou qualquer responsabilidade de Sócrates. Mas não valeu de nada. As insinuações prosseguiram, sobretudo em fases eleitorais - muitos escribas de serviço e conhecidos (a que não chamo jornalistas) e comentadores de televisão irresponsáveis tentaram convencer, sem êxito, os portugueses da culpabilidade e da corrupção do primeiro-ministro. Contudo, Sócrates nunca foi sequer interrogado nem ouvido. Algumas vezes teve de responder a perguntas ou insinuações feitas a despropósito por repórteres de ocasião, comandados por quem lhes paga. Uma vergonha!

Finalmente, o processo chegou ao fim. Sócrates nem sequer foi ouvido. Quem o indemniza, moralmente, pela operação de descredibilização de que foi objecto? Recebeu ao menos pedidos de desculpa dos políticos, comentadores ou jornalistas que se deixaram convencer por esta sinistra operação de "linchamento moral"? Que se saiba, não. E deviam tê-lo feito, até porque não estarão livres, um dia, de que lhes possa acontecer o mesmo. Como, aliás, os jornais e televisões que, com bastante inconsciência, se fizeram eco, sem quaisquer provas, da referida "operação".

Surgiu, entretanto, a notícia de que os investigadores do caso Freeport não chegaram a confrontar o primeiro-ministro com 27 questões - que logo foram divulgadas - por falta de tempo. Em quase seis anos...? É uma vergonha. O procurador-geral da República ordenou um inquérito para averiguar por que razão não houve tempo para ouvir Sócrates. Quanto tempo vai durar mais esse inquérito e a que resultados chegará? Mais seis anos? O ridículo é total.

A justiça vai muito mal. O Governo e os partidos têm de se pôr de acordo para que o cancro da justiça não tenha metástases e não atinja a democracia...»
Texto de Mário Soares, in DN online, 03-8-2010

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